Sobre ultrapassar-seI
Sob certo aspecto, Stalin - que foi um sujeito execrável - estava correto ao dizer que a morte de uma multidão não era propriamente 'morte'; morte é apenas o falecimento de um ente querido, de um amigo. Facilmente entende-se o que aqui quero dizer: só experienciamos a brutalidade da morte quando aquele que morre é alguém social, histórica e pessoalmente delimitada. Somente quando esses três vetores convergem para um determinado ponto - o 'quem' morre - é que tal fato mostra-se com toda a opacidade diante de quaisquer idéias mediadoras. Não se trata aqui de um discurso apologético ou um discurso de tese; é antes de tudo uma torrente de pensamentos que acompanham outras tantas torrentes - sejam elas de lágrimas, palavras ou ainda daqueles sentimentos desconexos que experimentamos nestes momentos - nascidas do falecimento de um amigo*.
Não demanda grande quantidade de pensamento a percepção que não fazemos experiência da morte propriamente dita. A nossa 'experiência' da morte é sempre da morte dos outros. Concorda-se, então, facilmente com Epicuro quando esse diz que a morte não é nada para nós pois não a vivenciamos. Mas sou obrigado a discordar duramente dele quando diz que por esse motivo não devemos temê-la ou preocupar-nos com ela. Mesmo desconhecendo sua essência, o que ela é na verdade, os fenômenos que apresenta são sujos e terríveis. A imagem da qual Fernando Pessoa se utiliza - de que morrer é como dobrar uma esquina; é só não ser mais visto - aqui também não serve para nada e talvez até aumente o nosso pavor. Não ser mais visto é des-aparecer, e por conseqüência ser esquecido (léthe, em grego). Para insinuar o que pretendo indicar é suficiente lembrar o vocábulo 'Verdade' em grego - alethéia - que nos remete a não-esquecimento. Desaparecer, portanto, é a irrupção da mentira e a nossa razão treme diante de tais palavras. Isso talvez aponte para o fato de que nem a poesia seja competente para lidar com tal assunto.
A morte é assim, algo difícil de se apanhar pelo discurso. Os três principais modos de discurso sobre a morte elencados por Platão, no Fédon - o da física (entendida como representante das hoje chamadas 'ciências naturais'), o da tragédia (literatura catártica) e o do mito (religioso) -, não esgotam de maneira alguma o que é a morte; todos os três são, de certa maneira, verdadeiros e falsos, dão e não dão conta do objeto, que por sua própria natureza está sempre, como possibilidade, conosco, mas nunca diante de nós, como uma árvore ou um copo estão diante de nós. Percebe-se, aqui, bem a dimensão do problema e sua profundidade angustiante, a ponto de forçar Sócrates a deter seu discurso e propor a seus interlocutores que apenas creiam em suas palavras... Como nos diz um filósofo de nossos dias: 'A razão é impotente ante os gritos do coração'.
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II
Mas não me sinto satisfeito em abandonar tal discurso no meio do caminho. Assim, quero fazer um salto. Quero novamente deixar claro que não se trata aqui de apologética, catequese ou afins. Mas sim, trata-se de conforto, esperança e fé. Apenas registro meu lamento sobre a incapacidade da modernidade (ou 'pós-modernidade', como alguns dizem) de ver nas verdades de fé, conteúdo noético inteligível, coerente e que incremente nossa experiência. Dito isso, prossigamos.
Muito já se falou sobre a angústia da morte dentro do horizonte do cristianismo e meu redobro não seria nada valioso senão para sanar um desejo de reforçar em mim e em alguns dos meus leitores, certas verdades e significações. Quero evocar aqui a célebre passagem exposta no Evangelho segundo João (capítulo 11), sobre a morte de Lázaro. Nela, as irmãs de Lázaro mandam avisar Jesus que aquele - 'amado' por este (Jo. 11,3) estava doente. A atitude tomada por Jesus é, a princípio, no mínimo curiosa: espera ainda dois dias antes de ir para a Judéia. Ao chegar, Jesus sabe que seu amigo está morto (Jo. 11,15). Atenhamo-nos, por um instante, às figuras de Marta e Maria, irmãs de Lázaro. Elas criam obstinadamente Naquele a quem mandaram chamar. Ele poderia ter curado seu irmão com apenas uma palavra, como fizera com o servo do centurião (Lc. 7, 6ss), mas não o fez. Elas viram inclusive o próprio Jesus derramar lágrimas (v. 35). É exigido delas então, o mesmo salto que tentamos promover; aquele que ultrapassa superabundantemente o domínio do fenômeno e acessa uma Verdade para além de nossas definições; o salto da fé. Elas próprias viram o Senhor se angustia re angustiaram-se com ele. Mas aqui há uma novidade em relação a tudo o que foi dito e as palavras de Cristo bem nos dizem: "Esta doença não é para a morte, mas é para a glória de Deus (v. 4) ... E, por causa de vós, eu me alegro por não ter estado lá [antes da morte de Lázaro] pois assim podereis crer" (v.15).
A tal novidade é justamente o ultrapassar-se totalmente o campo do possível e do previsível. É esperar firmemente no 'adiante'. É angustiar-se com o espírito já antegozando sua vitória. É o máximo que consegue-se dizer pois é o máximo da Verdade. E, mesmo se nosso ser se estremece nestes momentos onde a visão se turva, tenhamos a convicção de que mesmo "se o nosso coração nos acusa, Deus é maior que o nosso coração e conhece todas as coisas" (1Jo. 3,20).
Gabriel.
* A André Colin Lima.